Nos anos 80, a luta contra a violência contribuiu para fortalecer e consolidar o feminismo no Brasil. As mortes de Ângela Diniz (1979) e de Eliane de Gramond (1981) por seus ex-maridos chocaram o Brasil. Eram mulheres que puseram fim a seus casamentos, e, além da brutalidade dos assassinatos, os dois casos envolviam pessoas conhecidas da opinião pública, o que lhes conferiu ainda mais “notoriedade”. "Quem ama não mata" era a resposta dada pelas feministas àqueles que sugeriam que os homens matavam “por amor”.
Mas não tardou a tentativa de transformar as vítimas em rés, “compreendendo” o criminoso, que teria “perdido a cabeça” por ação delas. Organizadas, as mulheres repudiaram o machismo que levou Ângela e Eliane à morte, e que, depois, buscou incessantemente justificar essas mortes com base na conduta das vítimas. A tal defesa da honra era reivindicada. O movimento de mulheres não se calou e colocou em questão as insígnias do "em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher" ou a ideia de que "um tapinha não doi".
O tempo passou e, em 2000, a própria mídia foi pano de fundo para um crime análogo. A jornalista Sandra Gomide foi morta pelo ex-namorado, Pimenta Neves, então diretor de redação de O Estado de São Paulo. O assassinato aconteceu precisamente porque o namoro acabou. Por conta disso, ela sofreu agressões físicas e verbais, perdeu seu emprego, foi perseguida. Neves chegou a ameaçar de retaliações qualquer pessoa que oferecesse trabalho a Sandra. Pela mídia, a moça chegou a ser tratada como "aquela que namorou com o chefe para subir na vida".
Em 2008, outro episódio de violência contra mulher gerou comoção nacional. Eloá Pimentel, com seus 15 anos, praticamente foi assassinada ao vivo e em rede nacional pelo ex-namorado, que a sequestrou e a manteve em cativeiro por cinco dias. A agonia da menina foi acompanhada em tempo real, e ao se tornar a personagem central de uma história dramática, ela, como as já citadas, teve sua vida exposta e sua conduta julgada, apresentada como principal fundamento do comportamento agressivo de seu assassino.
Há poucos meses, a vítima foi Maria Islaine, cabelereira, morta pelo ex-marido diante de câmeras que ela mesma mandou instalar no salão onde trabalhava, julgando que essa atitude a protegeria da violência anunciada. Dias atrás, tivemos a infelicidade de testemunhar o advogado do assassino defendendo seu cliente com o bom e velho “ela provocou”.
Eliza e Mércia
Agora, a mídia tem apresentado as histórias de Eliza Samudio e de Mércia Nakashima como se fossem romances policiais. Convida-nos a acompanhar cada momento, provoca comoção, sugere respostas, vasculha a vida das mulheres mortas e as expõe a julgamento público, sem direito de defesa. A tragédia é exaustivamente explorada, e no final, a lição que fica é: elas procuraram.
Mércia morreu, aparentemente, porque rejeitou seu ex-namorado. Cometeu o desaconselhável equívoco de querer sua vida para si mesma, de não aceitar perseguições, sanções ou intimidações. Entretanto, tem-se falado em traição e ciúmes. E lá vem, de novo, a conversa fiada da defesa da honra. Mas é Mércia quem não está mais aqui para defender a sua.
De Eliza, disse-se de tudo: maria-chuteira, garota de programa, abusada, oportunista. Acontece que não importa. Não importa se ela foi garota de programa, se era advogada, modelo, atriz, estudante ou deputada. Ela está morta. E morreu, aparentemente, porque o pai de seu filho não queria arcar com as obrigações legais e éticas de tê-la engravidado.
Ela nunca vai poder se defender das acusações póstumas. Não vai ao “Superpop” defender sua versão ou sua história. Não vai estampar a capa de “Contigo”, acompanhada de frases de impacto entre aspas. Ela está morta, e o que ela fez ou deixou de fazer, pouco importa agora. E seria prudente, inclusive, evitar julgá-la pelo crime que a matou.
Mais uma vez, a história se repete. Mulheres são mortas por homens com quem se envolveram. Assassinos frios, esses homens tiraram a vida de mulheres confiando na impunidade, porque há quem os “compreenda”. A morte de Eliza e de Mércia parece ter sido calculada e premeditada. E mesmo assim, segue ecoando a ideia de que a culpa é delas, que elas procuraram, que elas provocaram.
O espetáculo da morte
Infelizmente, histórias como as de Eliza, Mércia, Eloá, Maria, Sandra, Ângela e Eliane são muito mais comuns do que se imagina. E antes de culminar em assassinato, outras formas de violência foram praticadas contra cada uma delas, como acontece com muitas – as que morrem e as que se salvam.
A espetacularização promovida pela mídia, no entanto, faz parecer que são histórias ímpares e distantes do cotidiano da vida real. Como se o perigo não morasse ao lado, como se muitas não dormissem com o inimigo. Na sua família, na sua vizinhança, no seu local de trabalho, no seu círculo de amigos, certamente há casos de violência contra mulheres, e certamente você ouviu falar de pelo menos um deles. Em recente levantamento, a ONG Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos apontou que uma mulher é agredida a cada 15 segundos no Brasil, e uma em cada quatro afirma já ter sofrido violência. Há que se considerar também que existem as que não afirmam – por medo ou vergonha.
Essas mulheres não são co-autoras de seu assassinato. É recorrente a trama montada para torná-las rés, para justificar suas mortes nas ações delas mesmas, para tolerar a violência. “Que sirvam de exemplo”, parece que dizem.
Num mundo em que a desigualdade entre mulheres e homens se expressa visivelmente desde na divisão das tarefas domésticas até no controle dos corpos delas pela Igreja ou pelo Estado, passando pela realidade de violência e pela discriminação no mercado de trabalho ou por serem tratadas como objetos descartáveis na rua e na TV; ninguém pode dizer que não sabia; nem fazer piadinhas que celebram os casos. São mulheres de carne e osso, não são personagens de novela.
São cúmplices dessa violência todos os que a toleram ou que buscam subterfúgios no comportamento da vítima para declará-la culpada por sua própria morte. São cúmplices silenciosos, igualmente, aqueles que fingem que machismo, discriminação e opressão são peças de ficção.
Fonte: http://terribili.blogspot.com/2010/07/uma-velha-historia.html
Mas não tardou a tentativa de transformar as vítimas em rés, “compreendendo” o criminoso, que teria “perdido a cabeça” por ação delas. Organizadas, as mulheres repudiaram o machismo que levou Ângela e Eliane à morte, e que, depois, buscou incessantemente justificar essas mortes com base na conduta das vítimas. A tal defesa da honra era reivindicada. O movimento de mulheres não se calou e colocou em questão as insígnias do "em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher" ou a ideia de que "um tapinha não doi".
O tempo passou e, em 2000, a própria mídia foi pano de fundo para um crime análogo. A jornalista Sandra Gomide foi morta pelo ex-namorado, Pimenta Neves, então diretor de redação de O Estado de São Paulo. O assassinato aconteceu precisamente porque o namoro acabou. Por conta disso, ela sofreu agressões físicas e verbais, perdeu seu emprego, foi perseguida. Neves chegou a ameaçar de retaliações qualquer pessoa que oferecesse trabalho a Sandra. Pela mídia, a moça chegou a ser tratada como "aquela que namorou com o chefe para subir na vida".
Em 2008, outro episódio de violência contra mulher gerou comoção nacional. Eloá Pimentel, com seus 15 anos, praticamente foi assassinada ao vivo e em rede nacional pelo ex-namorado, que a sequestrou e a manteve em cativeiro por cinco dias. A agonia da menina foi acompanhada em tempo real, e ao se tornar a personagem central de uma história dramática, ela, como as já citadas, teve sua vida exposta e sua conduta julgada, apresentada como principal fundamento do comportamento agressivo de seu assassino.
Há poucos meses, a vítima foi Maria Islaine, cabelereira, morta pelo ex-marido diante de câmeras que ela mesma mandou instalar no salão onde trabalhava, julgando que essa atitude a protegeria da violência anunciada. Dias atrás, tivemos a infelicidade de testemunhar o advogado do assassino defendendo seu cliente com o bom e velho “ela provocou”.
Eliza e Mércia
Agora, a mídia tem apresentado as histórias de Eliza Samudio e de Mércia Nakashima como se fossem romances policiais. Convida-nos a acompanhar cada momento, provoca comoção, sugere respostas, vasculha a vida das mulheres mortas e as expõe a julgamento público, sem direito de defesa. A tragédia é exaustivamente explorada, e no final, a lição que fica é: elas procuraram.
Mércia morreu, aparentemente, porque rejeitou seu ex-namorado. Cometeu o desaconselhável equívoco de querer sua vida para si mesma, de não aceitar perseguições, sanções ou intimidações. Entretanto, tem-se falado em traição e ciúmes. E lá vem, de novo, a conversa fiada da defesa da honra. Mas é Mércia quem não está mais aqui para defender a sua.
De Eliza, disse-se de tudo: maria-chuteira, garota de programa, abusada, oportunista. Acontece que não importa. Não importa se ela foi garota de programa, se era advogada, modelo, atriz, estudante ou deputada. Ela está morta. E morreu, aparentemente, porque o pai de seu filho não queria arcar com as obrigações legais e éticas de tê-la engravidado.
Ela nunca vai poder se defender das acusações póstumas. Não vai ao “Superpop” defender sua versão ou sua história. Não vai estampar a capa de “Contigo”, acompanhada de frases de impacto entre aspas. Ela está morta, e o que ela fez ou deixou de fazer, pouco importa agora. E seria prudente, inclusive, evitar julgá-la pelo crime que a matou.
Mais uma vez, a história se repete. Mulheres são mortas por homens com quem se envolveram. Assassinos frios, esses homens tiraram a vida de mulheres confiando na impunidade, porque há quem os “compreenda”. A morte de Eliza e de Mércia parece ter sido calculada e premeditada. E mesmo assim, segue ecoando a ideia de que a culpa é delas, que elas procuraram, que elas provocaram.
O espetáculo da morte
Infelizmente, histórias como as de Eliza, Mércia, Eloá, Maria, Sandra, Ângela e Eliane são muito mais comuns do que se imagina. E antes de culminar em assassinato, outras formas de violência foram praticadas contra cada uma delas, como acontece com muitas – as que morrem e as que se salvam.
A espetacularização promovida pela mídia, no entanto, faz parecer que são histórias ímpares e distantes do cotidiano da vida real. Como se o perigo não morasse ao lado, como se muitas não dormissem com o inimigo. Na sua família, na sua vizinhança, no seu local de trabalho, no seu círculo de amigos, certamente há casos de violência contra mulheres, e certamente você ouviu falar de pelo menos um deles. Em recente levantamento, a ONG Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos apontou que uma mulher é agredida a cada 15 segundos no Brasil, e uma em cada quatro afirma já ter sofrido violência. Há que se considerar também que existem as que não afirmam – por medo ou vergonha.
Essas mulheres não são co-autoras de seu assassinato. É recorrente a trama montada para torná-las rés, para justificar suas mortes nas ações delas mesmas, para tolerar a violência. “Que sirvam de exemplo”, parece que dizem.
Num mundo em que a desigualdade entre mulheres e homens se expressa visivelmente desde na divisão das tarefas domésticas até no controle dos corpos delas pela Igreja ou pelo Estado, passando pela realidade de violência e pela discriminação no mercado de trabalho ou por serem tratadas como objetos descartáveis na rua e na TV; ninguém pode dizer que não sabia; nem fazer piadinhas que celebram os casos. São mulheres de carne e osso, não são personagens de novela.
São cúmplices dessa violência todos os que a toleram ou que buscam subterfúgios no comportamento da vítima para declará-la culpada por sua própria morte. São cúmplices silenciosos, igualmente, aqueles que fingem que machismo, discriminação e opressão são peças de ficção.
Alessandra Terribili foi diretora de mulheres da UNE na gestão de 2003/2005 e Militante da Marcha Mundial das Mulheres
Fonte: http://terribili.blogspot.com/2010/07/uma-velha-historia.html
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