segunda-feira, 16 de abril de 2012

‘Ser negra e mulher é muito difícil no Brasil’


Carta Capital

A juíza Ivone Caetano
Ivone Ferreira Caetano é o nome de uma mulher que admiro. Aos 68 anos, casada há 42, ela é a Juíza da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca do Rio de Janeiro. Uma figura polêmica – lutadora e inovadora.

São delas alguns exemplos de decisões que irritam parte retrógada da sociedade e alguns juristas acomodados. Como repórter de CartaCapital, fui conversar com a juíza para discutir os assuntos que a tornam constantemente centro de polêmicas judiciais.
Segunda ela, um dos problemas que vem encontrando é o do reconhecimento a crianças, principalmente africanas no Rio. Quando ela toma conhecimento de algum deles – a perambular pelas ruas do centro da cidade – dá documentos especiais, sejam bebês, crianças ou adolescentes. Essas crianças africanas não aparecem em estatísticas brasileiras por entrarem no Brasil ilegalmente, fugindo de suas terras natais. Ela diz como resolve: reconhece as crianças oficialmente como estrangeiras a viver no Brasil e elas passam a ter direitos como saúde, educação e proteção da sociedade, tudo com base na Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente. É quando esses garotos – que chegam, na maioria dos casos, sem responsáveis, em navios principalmente – passam a existir como seres humanos no Brasil.

Quando defendem que ela não pode decidir sobre o direito de ir e vir, ela lembra: o direito à vida desses jovens é superior a tudo.Pelos mesmos motivos, que também irritam alguns setores, a magistrada manda tirar das ruas crianças que usam tóxicos e as interna em abrigos para tratamento.
E assume sua responsabilidade: “Algum pai que pode pagar internação e tratamento a seu filho o deixaria abandonado ao tóxico?” Na falta de responsáveis, o Estado tem essa responsabilidade e as crianças são encaminhadas para instituições que cuidam de viciados.
Ela também já mandou adolescentes grávidas e viciadas para tratamento obrigatório, garantindo a perfeita formação da criança.
Na área de adoção, Ivone Caetano também provoca celeumas. Lembra que, quando uma criança está para ser adotada, a Justiça faz perícia para saber se o interessado tem condições financeiras, psicológicas para criar um filho sadio. Então, a pessoa, tendo 16 anos mais que a criança, se é casada, solteira ou homossexual, não interessa para a juíza. Importante é que o adulto esteja apto a dar boa criação ao adotado.
Por essa linha vanguardista de pensamento, e com experiência de vida de quem passou profissionalmente por subúrbios do Rio e dá conferências no exterior, Ivone Caetano sempre tem dificuldades. Em vez de ter sentenças recorridas, ela já recebeu 19 representações – termo jurídico para um ato de repreender ou punir o juiz – “todas indeferidas e arquivadas”, lembra ela.
Ser negra e mulher é difícil no Brasil
Antes de se formar em Direito, Ivone Ferreira Caetano trabalhou no IBGE, na Secretaria de Finanças da Prefeitura e no Banco Boa Vista. Depois de formada, tentou – por nove vezes consecutivas – passar em concurso público ligado a sua profissão. Como o cargo pretendido era o mesmo, um dia ouviu de um dos examinadores, quando estava na terceira fase do teste: “menina, para de tentar entrar aqui: você é mulher e negra. E eles não gostam disso aqui”.
Desde que ouviu essa afirmação – sentida, mas nunca verbalizada – Ivone Caetano entendeu que precisaria ter sempre sua autoestima elevada e enfrentar, sem medo, sua vida, como mulher e negra, numa profissão elitista. Passou assim por todas as esferas do Judiciário até chegar ao cargo que ocupa hoje.
Sorrindo, com ar doce de quem cuida de crianças – e velhos – ela diz que sempre teve dificuldade em tudo que fez. Com cabelos curtinhos, olhar profundo de quem sabe o que está dizendo, desabafa, sem revolta: “ser negra e mulher é muito difícil no Brasil. Tudo é muito sutil e quem não tem traços do Daomé não sabe o que isso representa”, diz ela, brincando e mostrando seu nariz que tem formato típico da região africana de onde vieram inúmeros escravos para o Rio de Janeiro. Com humor, ela reforça: “E nem eu sei meus ascendentes são de lá”.
Terminada nossa conversa, encontrei um amigo que temos em comum, Marcelo Ferreira, diretor da Associação Comercial e Empresarial da Cidade Nova. Comentei com ele que tinha falado com a juíza sobre suas ações.
Joguei minhas desconfianças para Ferreira: essa figura respeitada por importante parte da sociedade e rejeitada em parte do Poder Judiciário, chegará a galgar o cargo de desembargadora, como já é de justiça e direito? Sendo progressista, mulher e negra? Ou tudo continua como aconteceu nos concursos de 40 anos atrás?
Estava lançada minha dúvida. Ferreira, com seus olhos claros, olhou fundo nos meus, sorriu silenciosamente, também com ar interrogativo e conclusivo.
Com esta curiosidade na alma, lanço minha esperança de o Rio ter, a curto prazo, a primeira desembargadora negra no Tribunal de Justiça, neste país hoje dirigido por uma mulher e tem outras mulheres em postos-chave da República.

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